O Barquinho Cultural

O Barquinho Cultural
Agora, o Blog por Bloga e O Barquinho Cultural são parceiros. Compartilhamento de conteúdos, colaboração mútua, dicas e trocas de figurinhas serão as vantagens
dessa sintonia. Ganham todos: criadores, leitores/ouvintes, nós e vocês. É só clicar no barquinho aí em cima que te levamos para uma viagem para o mundo cultural

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Tony Babalu: um músico à moda antiga

Tony Babalu lança 'Live Sessions II', com seis temas instrumentais (Foto: Lucas Altieri)

Tony Babalu é um desses raros músicos que sabem unir técnica e alma em suas composições, resultando em obras para se ouvir com atenção, calma, sem pressa. Seu mais recente trabalho, o CD “Live Sessions II”, lançado em agosto de 2017, traz seis temas instrumentais que passeiam por vários climas do rock, funk, soul, blues, em um apanhado de suas influências e daquilo que tem escutado desde que decidiu trilhar pelo caminho da música, ainda na adolescência, no início dos anos 1970.

Acompanham Babalu (composições, guitarra e direção geral) o tecladista Adriano Augusto, o baixista Leandro Gusman e o baterista Percio Sapia.
A banda: Leandro, Babalu, Percio e Adriano (Foto: Karen Holtz)

O novo CD sucede o “Live Sessions at Mosh”, de 2014, ambos lançados pelo selo Amellis Records e distribuídos pela Tratore e “construídos a partir de uma atmosfera vintage e orgânica que norteia todas as fases de sua concepção”. Isso se traduz na escolha do estúdio Mosh, de São Paulo, que mantém equipamentos, tecnologia e espírito dos anos 70, analógicos. “Algo que quase ninguém mais tem no mundo”, define.

Mais do que nostalgia, a decisão de gravar à moda antiga deve-se à concepção de seu trabalho atual, explica. “A música que eu faço tem uma raiz no improviso, que depende muito do estado emocional que você está”, adianta. As músicas foram gravadas quase “ao vivo”, para aproveitar a sensação do momento, exigindo perfeito entrosamento dos músicos. Não há emendas, overdubs, o que significa que cada faixa é um momento único.

Nesta entrevista – talvez seja melhor chamar de depoimento – ao Blog por Bloga, Babalu fala sobre como começou a tocar, as bandas de que participou, a cena rock nos anos 70 no icônico bairro paulistano da Pompeia, suas influências, inspirações e como vê a música atualmente.
CD traz na capa detalhe da Stratocaster 1973, presente de Wander Taffo


O começo de tudo

“Comecei com música no finalzinho da década de 60 – 69, 70, por aí. Comecei a aprender a tocar guitarra. Cresci num bairro aqui de São Paulo que é tradicional no rock, Pompeia. Tem muito roqueiro aqui, é até chamada de Liverpool brasileira. Isso facilitou. Daqui saíram Mutantes, Tutti Frutti, Made in Brazil. Sou de 1953, tinha em 1969 15, 16 anos, foi aí que eu comecei mesmo, vi Woodstock, gostava muito já de Beatles e Stones e comecei a pegar gosto pela coisa.

Comecei com violão e aí já peguei uma guitarra, meu negócio era tocar guitarra, todo mundo queria tocar guitarra. A grande influência nessa época era o Jimi Hendrix, o que ele tinha feito em Woodstock jogou definitivamente a importância do rock na guitarra. Apesar de o Jimi Hendrix ter morrido em 70, foi ele, mais outros guitarristas da época – Keith Richards, o próprio George Harrison, o [Eric] Clapton com as bandas dele, a guitarra era (é) o instrumento do rock. Como o piano é o instrumento do pop, a guitarra é do rock.

Aço: primeira banda de Tony Babalu (Foto: Arquivo)
Minha primeira banda profissional foi o Aço, o baterista era Rolando Castello Júnior, do Patrulha do Espaço, que existe até hoje e que existia antes do Arnaldo [Dias Baptista], ele que entrou na Patrulha e ele tinha aquela projeção, era o primeiro trabalho dele em banda fora dos Mutantes, depois dos discos solo que ele fez, então a Patrulha do Espaço ficou associada ao Arnaldo, mas a Patrulha do Espaço mesmo era Júnior, Dudu [Chermont] e Koquinho [Oswaldo Genari], que morava aqui na Pompeia. Dudu Chermont e Koquinho já faleceram. Mas antes disso a gente tinha essa banda, Aço, que tocava hard rock, mais parecido com a Patrulha. Aí nós entramos no Made in Brazil em 74, acabou acontecendo de a gente entrar os dois juntos.”

A cena na Pompeia na época

“Na época não tinham estúdios de ensaio, essa estrutura que tem hoje, essa coisa de ensaiar pagando, você tinha que ensaiar na sua casa, não tem conversa, e os amplificadores eram paredes, enormes, não existia ainda a cultura do cubinho, do amplificador pequeno, portátil. Então você tinha que ensaiar em casas que tinham garagem, incomodava os vizinhos, e tinham focos de ensaios aqui na Pompeia. Tinha a casa onde os Mutantes ensaiavam, a casa do Made, a do Pholhas, ali na Barão do Bananal, a casa do [Roberto Gurgel] Juba, que hoje é batera da Blitz, e as pessoas se encontravam nesses ensaios e tinha muita reunião na casa dos músicos, para ouvir música.

Ouvir música era o programa completo, era suficiente. Por exemplo: chegou um disco importado do Deep Purple, de alguém que não saiu no Brasil ainda, os discos demoravam para sair, uma defasagem de um semestre, isso quando eram fabricados aqui, muitos nem saíam aqui. Um disco novo era o suficiente pra você ter uma noite, chamava os amigos e a gente fazia audições, ouvia o disco faixa por faixa, os músicos comentavam, tentavam tirar, essa era a coisa aqui na Pompeia. Era um bairro efervescente, o assunto era música, tinham muitos músicos, todo mundo escutava música como prato principal.

Hoje, a música é um complemento. Você sai de casa vê um show, um teatro, faz outra coisa. Você precisa de mais de que uma música, ela atua mais como complemento de uma festa, de uma reunião, de uma noitada, um barzinho. Nessa época a música era o principal. Era o assunto, era o tema, eram as coisas que estavam acontecendo. O Brasil também era fechado.”

O rock no contexto da época

“Em termos de comportamento, não só aqui como lá fora, aqui era um reflexo. Como não tinha uma cultura de consumo, uma indústria de consumo, a maneira de se vestir de quem curtia rock and roll por exemplo, era agressiva, cabelo comprido, calça jeans, camiseta, tênis, eram coisas que estavam entrando na cultura do dia a dia, tamancos. Não só na maneira de vestir como na forma de falar, a cultura indiana estava entrando ainda, aquela coisa de incenso, de batas floridas, de macrobiótica, toda essa cultura indiana ainda era muito nova aqui, e era associada com os roqueiros.

Agora o regime político era fechado, era uma ditadura, e tudo que era fora do sistema incomodava. Então você corria o risco de ser hostilizado na rua pelo seu cabelo, você não podia fazer reuniões, juntar dez, 15 pessoas como se faz hoje porque a polícia ia lá ver se ali não tinha um foco subversivo, ou comunista, então as coisas se misturavam. Você veja: o rock é uma cultura da sociedade de consumo americana, ocidental, americana, inglesa, não tinha a ver com a esquerda política, por exemplo, mas no comportamento sim, na atitude, sim, era uma cultura de rebeldia e das artes, em geral.

Tinha, sim, que enfrentar sempre a sociedade, sempre explicar por causa da associação muito forte com o visual, o visual era muito fora do sistema. Você confronta o sistema, mas o que você propõe? Seria a pergunta. E não tinha uma sociedade de consumo.

A coisa começou realmente a abrir, melhorar, no meio da década de 75 para cá, quando o rock começou mesmo a entrar na cultura da música: Rita Lee, com 'Ovelha Negra', foi um dos primeiros discos do Tutti Frutti que rompeu a barreira mesmo, entrou com música em novela, e aí as coisas começaram a acontecer de maneira diferente. Quando eu comecei era bem apertada a coisa.”

O papel do rock na rebeldia jovem


Made in Brazil: grupo que está completando 50 anos de estrada e com o qual Babalu gravou 4 discos (Foto:  Divulgação)


“Desde o movimento da Tropicália, que não era rock, era uma confrontação ao padrão da MPB, desde esse final dos anos 60, do Tropicalismo para cá, o rock and roll era associado com a juventude rebelde, tem aquele fundamento político, mas não política de Estado, de regime, a política familiar, o conflito de gerações, que era o motor, o pavio da irreverência, da maneira de ser (‘eu não quero ser que nem meu pai, não quero fazer 40 anos’), aquela época do movimento da contracultura, hippie, amor livre, uma cultura antiguerra, os ídolos eram Jane Fonda, Peter Fonda, de filmes como “Sem Destino”.

Era tudo uma contracultura, contra aquela cultura estabelecida pelos padrões da sociedade ocidental, principalmente europeus da Inglaterra e dos Estados Unidos: a maneira de se vestir, a obrigatoriedade de você ter uma religião, de casar, todas essas regras rígidas de comportamento da sociedade. Por isso que eu digo que o rock está inserido num contexto de conflito de gerações, entre a moralidade da sociedade conservadora e uma sociedade liberalizante através da música.

Era isso, não tinha a questão política. Embora caminhasse no mesmo rumo das questões políticas, da contracultura na arte, dos regimes políticos alternativos, como o comunismo, o marxismo, o socialismo... toda essa cultura política de esquerda também acontecia na mesma época, mas a coisa da música, do rock, ela estava mais centrada no conflito de gerações: ‘eu não quero ter a vida que meu pai tem, por exemplo’, obedecer à mesma sociedade de consumo, ter a mesma situação, ou eu quero ser livre, entre aspas, viver sozinho, morar com uma pessoa sem casar com ela, romper essas regras de comportamento.

Aí que eu acho que a música, que o rock se insere. Meus pais deram um espaço muito grande, eu conheci Suzi aos 15 anos; eu não sofri internamente o conflito de gerações porque eu tive pais que realmente não se importavam com isso, não eram preconceituosos, conservadores, autoritários, sempre aceitaram as coisas numa boa, mas a música era basicamente uma tentativa de se expressar, de criar um padrão próprio de comportamento que não fosse aquele padrão certinho, politicamente correto que hoje está voltando a ser, mas aquele politicamente correto chato, moralista.”

Aprendendo a tocar

“Eu fui estudar violão com uma professora que era [a professora] da minha irmã, ela comprou um violão e largou mão, aí eu peguei o violão, a professora e comecei a ter aula, ela começou a me dar os primeiros acordes e quando eu comecei a aprender a tocar ela quis me passar ‘Meu limão, meu limoeiro’, aí foi a última aula. ‘Não é por aí’. Mas eu já sabia alguns acordes, a partir daí eu fui sozinho. Autodidata, de ouvir discos, tirar a música, tentar fazer como estava no disco e aí o ouvido ajudando, com amigos, assim que eu aprendi a tocar, com muito pouca teoria.”

Discos que influenciaram


O 'disco da banana': 1º álbum com o Made in Brazil


“Foram vários. ‘Revolver’ (1966), do The Beatles, aos 12, 13 anos; o ‘disco do bolo’ dos [Rolling] Stones – ‘Let it Bleed’ (1969) foi outro, mas aí a coisa realmente começou a ficar forte com o último disco do Jimi Hendrix, chamado “Band of Gypsys” (1970), com Billy Cox (baixo) [mais Buddy Miles, bateria), um disco ao vivo de 1970, e aí eu ouvi aquilo e disse, ‘vou tocar guitarra’, e fui atrás.

Um disco que também me marcou foi do Steppenwolf, na verdade mais uma música em um disco que tem ‘Born To Be Wild’, ‘The Pusher’, um disco de 68, 69. Depois vieram os discos clássicos, mas esses ainda são anteriores àquela famosa trinca que veio nos anos 70 – Led Zeppelin, Deep Purple e Black Sabbath. Esses, mais Grand Funk, Santana, todo o pessoal que tocou em Woodstock – The Who... Isso é tudo a formação básica.

O disco que me fez querer ser músico digamos que tenha sido o “Revolver” e o “Let It Bleed”, e também o “Beggars Banquet” (1968) do Rolling Stones; agora o que me levou a querer ser guitarrista foi o Jimi Hendrix. Eu era muito novo, e não conhecia, tinha 16 anos; quando eu conheci o Hendrix, esse disco, ele já tinha morrido. Woodstock (o filme) nem tinha passado aqui ainda. Ele morreu em 70, quando eu ouvi o disco ele tinha acabado de morrer praticamente, ele morreu em setembro de 70 e o disco saiu aqui no final de 70 começo de 71.”

Na estrada

“O Aço era um trio, não tinha música própria, a gente fazia o repertório dos outros, como The Who, Grand Funk. O primeiro disco que gravei foi com o Made in Brazil, o da banana, tenho até uma música nesse disco, a “Intupitou o Trânsito”, minha única parceira com o Oswaldo e o Celso [Vecchione], as outras músicas que eu tenho no Made são parcerias com o Oswaldo. Foi gravado em 1974.

Aí eu gravei os quatro primeiros discos do Made in Brazil, a fase dele na gravadora RCA: o ‘Made in Brazil’, homônimo, foi o primeiro, o Júnior [Rolando Castello Jr] participou desse disco, Cornelius [Lúcifer] é o cantor, um grande vocalista, que fez muita história, falecido há uns dois, três anos, aí teve ‘Jack, O Estripador’ (1976), ‘Pauliceia Desvairada’ (1978), que foi o disco em que tive mais participação como compositor, e o ‘Minha Vida é Rock ‘n’ Rol’ (1980), que foi o último que o Made fez por uma gravadora grande, convencional, depois viria a fazer outro, o ‘Deus Salva... O Rock Alivia’ (1985).

Eu continuei participando, mas já foi diminuindo de intensidade. Em 1980 eu participei do Festival Shell de MPB, da TV Globo, com a música ‘Cidade Louca’, e uma banda chamada Artigo de Luxo, fiz um disco com o Artigo de Luxo e essa música, mas a gente parou na primeira, não fomos classificados para as finais do festival. Aí entrei no Quarto Crescente, que o Percy [Weiss], ex-vocalista do Made in Brazil me chamou para fazer, tenho um disco com eles de 1981, fiquei até 85, 86, depois fiz outra banda, chamada Bem Nascidos e Mal Criados, que não teve disco, mas tocamos em todos os lugares alternativos, era uma banda com duas cantoras, mais punk rock. Toda essa produção mais tocando, não cantando.”

A fase instrumental

“Resolvi entrar mesmo no instrumental nos anos 2000, mais especificamente depois de 2010, que eu lancei esses dois discos. Nesse tempo eu fiz muita coisa como produtor, continuei tocando com o Made, até hoje eu toco, a banda está fazendo 50 anos e de vez em quando eu vou e faço uns shows.


Entre 2010 e 2012 formamos a Betagrooveband, com a Marina [Abramowicz] na bateria e um baixista que hoje está morando em Portugal, PV Ribeiro; fizemos um show até importante, que foi a comemoração dos 30 anos do Centro Cultural São Paulo, tem três vídeos desse show na internet. É uma banda que tem um repertório muito legal que eu ainda quero gravar em disco. É uma proposta de trio com uma cara mais antiga, mais de Cream, mais pesado, um som mais pulsante, mais para rock mesmo, funk rock, uma coisa mais forte mesmo, diferente dessas duas propostas que eu estou fazendo com o quarteto, que é um som mais maduro, de climas.


Eu sou uma pessoa que escuto de tudo. Eu toco rock and roll, mas gosto de funk, o funk com tradição do soul music, mais black mesmo, sou uma pessoa muito eclética com música, escuto bandas pop, sofisticadas, complexas, como Steve Miller Band, como o trabalho do Sting, o Weather Report, uma banda clássica de instrumental, da mesma forma que eu escuto Stones, Muddy Waters, John Lee Hocker, Chic, do Nile Rodgers, sempre gostei muito.

O Chic é uma disco music com uma proposta dançante, onde a guitarra faz uma coisa rítmica muito particular, e o tipo de coisa que o Nile Rodgers fez foi de romper fronteiras na música, porque com ele os temas começaram a ser feitos para discoteca mesmo nos anos 70, então tem aqueles temas longos, onde fica muito tempo sem acontecer nada, aquela pulsação em cima de um riff de baixo. Tanto é que uma das músicas do Chic da época, 'Good Times', foi uma das primeiras músicas de hip hop, os caras já começaram a fazer colagens, quer dizer, uma coisa influenciou a outra na música.

Então como eu sou uma pessoa de escutar muito, ecleticamente, o que eu mais gosto, que não sai do toca-discos, é o básico do rhythm and blues: Eric Clapton, Stones, e variações do classic rock, ZZ Top. Mas eu gosto de Police, outras coisas, e o resultado disso é que de repente durante muito tempo eu fiz músicas com bandas vocais, com cantor, com letra, e de repente caí na música instrumental assim nos anos 2000 pra cá.

Teve um primeiro disco feito em casa, chamado ‘Balada na Noite’ (2003), sem banda, em casa mesmo, com tudo eletrônico, mas já instrumental. Fiz um show no MIS em um projeto de música instrumental em 2007; a coisa foi meio que naturalmente se encaixando. Em princípio, não era a ideia de ser meu trabalho principal, mas acabou acontecendo de começar a dar certo, começaram a surgir temas instrumentais, em cima de tudo que eu ouvi e tocar como músico, pegar a guitarra e não se preocupar com a letra, com arranjo, com cantor, com a métrica da música, com tocar em rádio. Quando eu dei essa relaxada eu caí na música instrumental e falei ‘aqui é uma delícia, toco o que eu quero, faço o que eu quero’, e estou nessa e acho que vou ficar nessa muito tempo.”

O processo de criação

A Fender sempre por perto para captar a inspiração (Foto: Carlos Mercuri)

“O tema sai aqui em casa, geralmente. Eu mesmo construo uma base para mim mesmo, eletrônica, baixo, batera, teclado num estúdio que eu tenho, das antigas também, monto essa base com esse riff, essa melodia, e começo a fazer a melodia em cima e preparo para os arranjos, faço um arranjo básico da música inteira, fecho a música tudo sozinho, gravo para a banda a minha parte de guitarra tocando e a parte deles sintetizada, bateria eletrônica, baixo, só para eles saberem a harmonia e a grade da música.

Aí que a gente começa a música para valer. Mando aquilo para eles por internet, passo os links, eles ouvem, tiram e vamos ensaiar. Chegamos para ensaiar e aí é outra música. Porque você parte dali e aí cada um começa a pôr suas coisas, seus climas, a música começa a sair lá, mas a massa, a grade, a harmonia saem daqui.

Lá a gente começa a trabalhar e ela cria a forma final. Aqui ela tem três, quatro minutos, às vezes ela tem um minuto, é uma levada, um riff, e lá ela ganha a forma final. Mas como é baseada em improviso, porque eu tenho um sistema de trabalho – que acabou acontecendo naturalmente também – que é muito diferente da grande esmagadora maioria: que é aquela coisa que a música tem muitos trechos em que vale o que tiver na hora, se você tocar duas vezes a mesma música não vai sair o mesmo solo, não vai sair o mesmo teclado exatamente, não vai ser a mesma virada de batera; a gente improvisa e cada hora é uma leitura, tem grades, tem situações, convenções na música, melodias principais, e tem a largada pra solar, aí o que vale é o que acontece.

Tradicionalmente não se faz assim. Se faz um disco como: você vai, grava num estúdio, vai a bateria, aí você vai colocando a guitarra, outro instrumento, volta, faz overdub, põe duas, três guitarras, põe vários efeitos, várias coisas, vai fazendo, é um trabalho de pintura que você não faz em um dia, porque em um dia você grava a base. A minha maneira de gravar é completamente diversa disso, porque a gente já chega com as coisas e grava ao vivo.

Tem aquela coisa de ser uma pintura da hora, daquele momento. Nós fizemos vários takes, para aprovar um deles, não é aquela coisa de teve um erro um take, volta ele inteiro, não é consertar o erro na máquina, então a música tem dez minutos e se fosse fizer um erro, alguma coisa que não passa na guitarra, todo o take vai ser refeito. Quer dizer, um músico depende do outro nessa questão, isso faz com que a banda comece a ter uma integração, vale muito o emocional da hora que você está gravando. Escolheu o take, aí o resto que você mexe é no timbre, não nas notas. Não acrescenta mais nada nem tira mais nada o que está lá.

Essa forma de gravação é uma forma que é inusitada. É simultâneo, ao vivo. Por isso gravamos no Mosh, é um estúdio assim, que tem um equipamento que quase ninguém tem no mundo. Eles têm as máquinas, as mesas, os compressores, é um equipamento ainda dos anos 60, restaurado, com válvulas novas. É toda aquela atmosfera. Eu gravei o disco como se eu estivesse nos anos 70 mesmo. O Mosh tem esse equipamento, ele não acha aquele som no computador, ele acha aquele som no ampli da época, com válvula, com microfone, por isso tem esse sabor, porque o estúdio tem essa cultura também.

Esse que é o conceito dos dois discos, seria analógico. Tem aquela coisa de quem gosta dos discos de vinil ainda. É como se eu estivesse hoje fazendo a música dos anos 70. Isso não é algo que foi pensado para ter um diferencial, isso aconteceu por causa do que eu vivo mesmo.”

Diferenças entre os processos

Eu gosto dos dois [processos de gravação], eu gosto também da tecnologia, muito, para escutar. Mas para fazer, nessa proposta de trabalho, a música que eu crio prefiro fazer na moda antiga. Eu já trabalhei nos dois, tudo que eu fiz de gravação foi mais nesse processo de fazer compartimentadas as coisas, fazer sucessivamente, não simultaneamente.

Eu gosto também, é algo mais cerebral, que não necessariamente é frio, têm muitos resultados que você ouve e tem a impressão de que é vivo, a coisa realmente é quente, não perde a pulsação, mas é uma questão de opção, para eu fazer tocando guitarra prefiro fazer a coisa simultânea porque a música que eu faço tem uma raiz no improviso, que depende muito do estado emocional que você está. Você tem um padrão, obvio, mas, dependendo do estado emocional, do momento de sua vida, você coloca ali uma coisa que tem que ser ali na hora que você está sentindo a música ser executada por todos.

Nesses dois trabalhos que eu fiz no Mosh, pelo conceito do trabalho tem que ser simultâneo, tem que ser ao vivo, não veria de outra forma. Mas isso não quer dizer que eu não possa fazer um trabalho e gostar de fazer um trabalho nesse processo tradicional de gravação, porque é uma obra de arte com um processo de registro diferente, e é legal também. Mas isso pode mudar também.”

A música hoje em dia

“O que eu percebo é que tudo ficou extremamente segmentado, a oferta de música é escandalosamente maior, não só de música, como de informação, e não só em relação à música, mas também às artes, a tudo. A oferta é grande demais, a internet, a velocidade de processamento da informação cresceu tanto, a informação é tão rápida e tão abundante que tudo fica segmentado.

Então se você pegar a música agora tem 15, 20, 30 vertentes sendo consumidas ao mesmo tempo. São zilhões de bandas novas, artistas, trabalhos novos em todas as áreas da música, tudo disponível com qualidade HD, tudo fácil de ser corrigido, se você não canta bem, não toca bem tem um programa de computador que resolve a sua situação, então eu acho que a música caminha para a música ao vivo, para apresentação ao vivo, porque você está vendo a pessoa fazer aquela música na hora, aquilo passa a ser a única maneira autêntica, o resto que você escuta não sabe se é uma máquina que está tocando, se aquilo foi corrigido, se saiu de um ser humano, da cabeça do ser humano.

E a tendência é ficar assim. A própria música está sendo diluída pela oferta muito maior do que a demanda. Tudo é over hoje em dia. O que seria uma novidade? É um produto de consumo que não é só necessariamente a música. Hoje um artista de sucesso, um músico de sucesso tem, além da música, a coreografia, a dança, a imagem, a opinião, a atitude, como ele se expressa, que posição política ele tem, o que ele propõe, ele tem um monte de coisas que não têm a ver com música, que são o componente da indústria em que tudo é vendido, tudo é misturado em um conceito só e a música é um elemento; às vezes a música não é forte, mas o que entorna ela é. Então você vê uma coisa espetacular, mas tudo gira em cima da música.

Tudo ficou muito segmentado, muito compartimentado, e é difícil se encontrar nesse mar de informação para eu dizer o que realmente é uma novidade em conteúdo. Eu acho que o caminho da música, ela tende a ser valorizada quando ao vivo. Você vê o músico executar aquilo na sua frente, tem um contato físico com a música, não através da imagem, nem sequer do que você escuta no fone de ouvido, que passa a ser uma trilha para sua vida. Agora se você quiser ter contato com a música tem que ver o músico ao vivo, é a única forma de você ter um contato com a música na sua raiz pura, música pela música, pela construção, pela expressão da música.

Fora isso você está vendo um produto manipulado, que não necessariamente é ruim, mas que não é autêntico, não é cem por cento música, às vezes não é nem 50% de música. Você está vendo um produto que foi pensado, foi feito e você não sabe até que ponto a parte humana, fisicamente, tem de participação naquele produto. Claro que qualquer produto é humano em última análise, mas o que você está ouvindo, quem fez, foi um músico? Ou foi um músico que pensou e aquilo foi feito por uma máquina E isso já dá uma grande diferença.”

Espaço para música ao vivo

“Os espaços sempre foram o grande problema da música e das artes em geral. Nós estamos ainda em uma época de transição. Por exemplo: em 2008 não existia Facebook, de cinco anos para cá que você começou a ver vídeos, e o que você via no computador passou para o smartphone, isso há três, quatro, cinco anos. E isso praticamente foi um golpe mortal em coisas como fotografia, música. Isso afeta também a coisa do espaço, porque você passa a ter a vida no seu smartphone, então ficou difícil. Você tem alguns espaços alternativos, tradicionais, acho que sempre vai haver espaços, o que eu questiono é se com o tempo vai continuar a ter gente que sai só para ver música.

Por exemplo, hoje em dia a música não se faz mais em teatro. São poucos os espaços tradicionais para você realmente ter aquele contato com a música ao vivo. Isso é realmente um problema, porque os espaços passam a ser espaços onde a música não é o principal, é um complemento, que são os barzinhos, para o dono do bar interessa você entrar lá e consumir, beber e comer, o que ele coloca para você assistir é o gancho para você entrar, comer e beber.

Então tem várias outras coisas que não são música e que lhe atraem lá: o ambiente, a possibilidade de conhecer alguém, a maneira como você é tratado pela casa, a comida... Dentro de todo esse cardápio aparece a música e em muitos lugares nem isso, não tem nem a música. Então a gente não pode considerar isso um espaço para a música. O espaço para música deveria ser só para música, você entrar e assistir a um show.”



Como se ouve música hoje

“A quantidade de informação, do processamento de dados: quanto mais diversidade você tem na mão, mais você pode escolher, zapear, no próprio smartphone, e você está tão acostumado a ter um leque de opções que o tempo se comprime, você não fica em nenhuma, está sempre pulando.

Qualquer coisa que tenha cinco, dez minutos na internet é uma eternidade, não consegue ficar muito tempo numa coisa, porque todo mundo está publicando sempre alguma coisa, você nem precisa ir atrás de informação, elas vêm, sejam elas fake ou não. É tanta informação que acabou aquela coisa de você parar em alguma coisa como você saborear uma taça de vinho, ouvir um disco inteiro se torna raro.

Hoje se você consome na internet uma música, se você gosta de uma música você vai lá no iTunes e baixa a música, se gosta de três, para que você vai ter um disco inteiro se você só ouve no Spotfy. Se você quer ter o disco inteiro você baixa e deixa ali no seu pen drive, no seu iPod, o conceito de um disco, que tem 80 minutos ficou sem sentido.

Então o artista hoje lança músicas, não lança álbuns. Ainda existe o álbum, mas já virou uma espécie de catálogo, de brinde, de currículo do artista, o CD físico. E no futuro vai ser mais ainda, mas as pessoas ainda obedecem ao conceito de álbum mais como eco de que sempre foi assim, mas não tem motivo. O conceito de fazer um CD de 40 minutos - agora acabou de sair o CD do Chico Buarque - é um conceito aprisionado à quantidade de informação que cabe num CD físico.

Então o suporte físico ficou sem razão de ser. Estamos vivendo ainda um eco. Antes o artista tinha que apresentar um trabalho e não tinha essa rapidez. Se você quisesse ter acesso à obra de um artista você tinha que comprar o CD, tenha que ter o aparelho para tocar, hoje você não precisa carregar nada. Se não quero estar sempre conectado pode baixar e guardar em algum arquivo de memória, um MP3, e ouço offline. Então essa coisa física é que ainda dá suporte, e daqui a 50 anos, quem está nascendo dá valor pra CD?

Acho que ondas e ondas retrô [como a volta do vinil] vão existir sempre, mas o que vence no fim é a praticidade. O cara vê o vinil como uma novidade, começa a comprar, mas o vinil ocupa espaço físico e os apartamentos hoje em dia são de 40 metros quadrados.

Já não combina, o mundo segue para pouco espaço, otimização do espaço, nem HD externo, isso está sendo posto em cheque também, as pessoas estão colocando os back ups, as coisas importantes, tudo em nuvem. Nós ainda somos uma geração que viveu o analógico, e daqui a 20 anos? Que mundo que as crianças de hoje vão receber? Estamos ainda numa transição. E as crianças de agora? E daqui a 50 anos?

Eu parei no meu tempo, não é que eu acompanhe, que eu tenha raiva do mundo moderno, acho tudo muito legal, uso as coisas, mas eu acho que o conceito de disco, de álbum, de obra e até mesmo o conceito de artista já é uma coisa misturada no meio de milhares de informações, montanhas que você tem; é difícil você fazer alguém fiel, e vai ser ainda mais difícil daqui pra frente, porque você pega uma garotada aí e onde eles vão se apoiar?

Vejo a garotada aí descobrindo Beatles, achando uma maravilha, baixa toda a coleção, fica seis meses ouvindo, e depois acabou, porque é uma coisa finita, mas que viveu 13, 14 anos sem saber o que era. É muita coisa, e hoje as pessoas não querem perder tempo, é tanta informação que a pessoa é condicionada a escolher toda hora: o que eu faço, onde eu gasto meu tempo.

Fora isso a informação vem atrás de você pelo WhatsUp. Claro que isso – o excesso de informação – vai levar as pessoas a valorizarem, por isso que tem esses movimentos retrô, elas começam a descobrir o valor.”




Links:

Site oficial


Show Instrumental Sesc Brasil


Documentário no SescTV


Canal oficial no Youtube